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FLORES ONLINE


Quinta-feira, 21.02.13

O Chico Moleiro

Autor: João Maria Barcelos

No tempo em que tudo andava devagar, em que a mó andadeira das azenhas parecia endiabrada de rapidez; no tempo em que os pássaros despreocupados não enrouqueciam de tanto protestar, havia na Freguesia um moleiro chamado Francisco, por alcunha Chico Moleiro — outras, e mais refinadas, lhe chamariam, sem que ele sequer suspeitasse. Diligente, mourejava do nascer ao pôr-do-sol na sua distante azenha da Ribeira do Pulo. Mal os primeiros raios de sol inauguravam o dia, arreava a mula e, correndo as casas, carregava as moendas que lhe dariam para um longo trabalho.

Durante todo o dia, era vê-lo sentado na banca de um só pé atento ao andar da mó, afinando a espessura da farinha, depois ensacando-a, voltando a encher a tremonha, numa dobadoira contínua. A cada volta da pedra, uma nuvem de farinha se abatia com a leveza de uma pena na apanhadeira, enchendo-a tão devagar que parecia não ter fim. Na toada contínua das mós, Chico Moleiro sonhava terras distantes, ele e a sua Maria passeando à tardinha de um fim-de-semana numa longa avenida cheia de gente colorida, como aquela dos postais que vinham da América: ambos bem vestidos e calçados, que lá não há gente descalça — até dizem ser proibido andar sem sapatos. O contrário da natureza viva da sua terra — aqui cresce-se descalço, as solas dos pés tornam-se tão rijas que nem se sente a aridez dos caminhos.

Mas tudo aquilo era um sonho tão distante. Para angariar o dinheiro para as passagens, embora só para o casal sem filhos, eram necessários anos de trabalho. Por isso, mourejava dia-a-dia para arrecadar algumas economias que ia amealhando tostão a tostão...

Não tinha a sorte do Urbano do Cabeço, não: esse, por ter um compadre rico que lhe emprestara o dinheiro, já lá estava na Terra da Fartura, ganhando por dia mais do que ele ganhava num mês. Mais! Muito mais. Terra desgraçada esta onde nascera. Mas não desistia — cada dia começava mais cedo e a casa regressava mais tarde. Mal chegava, comia umas couves espernegadas e o cansaço era tanto que caía na cama como uma pedra. Maria já se habituara e no vazio da casa nem um lamento se ouvia.

A vida corria na mansidão do tempo e nada acontecia de novo. Certo dia — ele há dias em que um homem não deveria botar os pés fora da cama! —, ao distribuir as moendas pelas portas, enganou-se no peso da farinha para o Manuel do Outeiro, e levou-lhe o dobro da maquia. Este, que não tinha trava na língua — apelidavam-no de Respingado —, ao ver-se iludido, começou logo a disparatar:

— Grandessíssimo ladrão, que só pensas em dinheiro e vives roubando o pobre! Não nos basta a vida miserável que levamos, para ainda sermos enganados por um pelintra qualquer; nunca mais me apareças em casa, que o nosso grão passará a ser moído no moinho de Ti João Travassos; esse, sim, é homem sério; põe-te a mil léguas desta casa, seu grande cornudo, que tens a testa mais alta do que a cornadura do boi da Junta; vai-te, testinha de osso, e nunca mais aqui voltes, desgraçado!

Com tais palavras, o Chico Moleiro ficou atordoado. Sentindo a cabeça mais pesada do que o rodado da carroça da mula, baixou os olhos ao chão e continuou caminho, com tais frases fazendo eco no salão do cérebro, agora sentindo-o completamente vazio. Poderia algum dia imaginar a sua Maria nos braços de outro, se calhar mais do que um, pela conversa aumentada do outro!

Não merecia tal sorte. Ele, um escravo do trabalho, que nunca se aventurara a pensar noutra mulher, que só conhecera uma na vida. O dia inteiro para ali fechado, moendo o grão, remoendo ideias e sonhos perdidos no caudal da ribeira. Sorte macaca. O caminho agora parecia-lhe alheio, nem notava as topadas nas pedras salientes. Com pouca gente encarava, mas sentia-se como que na mais movimentada avenida da América, com mil olhos a escarnecê-lo: “... a testa mais alta do que a do boi da Junta!”... Não, aquilo nunca poderia ficar assim: cornudo qualquer um pode ser, manso não. Um homem tem de ter brio... Pensou no machado, na foice roçadoira, que guardava atrás da porta da cozinha, na faca de matar o porco... Uma nuvem densa encobria-lhe o cérebro, impedindo-o de um raciocínio lógico.

Chegou a casa e ela esperava-o como habitualmente, a malga da sopa aferventada e o olhar distante... Vida miserável a troco de fome e injustiça.

A mulher, de repente, sentiu-lhe no olhar algo muito estranho, mas não chegou a emitir qualquer palavra. Nem um gesto de defesa conseguiu inventar — do alto viu cair-lhe pesadamente o olho pesado da enxada, atingindo-lhe a testa, depois a nuca e, por fim, num flácido desacordar, abateu-se no chão térreo da cozinha...

O súbito alvoroço naquele casebre sombrio atraiu a vizinhança. Levaram-na, mais morta do que viva, para o Hospital, duas léguas e meia por atalhos íngremes, numa rede improvisada. Apesar do esforço do médico, com agulhas e linhas, pensos e remédios, a pobre nunca mais disse coisa com coisa: parecia um vegetal, alheia a tudo.

Dois dias depois, Chico Moleiro mirava vagamente a nuvem repetida de farinha ao som da música já conhecida. Sentiu abrir-se a porta da azenha e ouviu voz de prisão. Não se mexeu da banca, continuando a olhar fixamente a andadeira que agora, apesar de endiabrada, parecia emudecida. Ainda recordou vagamente as avenidas dos postais do sonho perdido. Mas aquela fantasia havia-se esmorecido no cataclismo da tragédia que lhe estaria reservada no destino da vida, agora mais desgraçada do que nunca.

 

apanhadeira — caixa onde vai caindo a farinha nas azenhas

couves espernegadas — couves cozidas com um pouco de banha

desacordar — desmaiar

moenda — saca de cereal ou de farinha

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por Susana Soares às 11:22

Quarta-feira, 16.01.13

Lenda do Monte das Cruzes

Autor: João Maria Barcelos

No início do povoamento da Ilha, o monte que encima a Vila de Santa Cruz estava pejado de silvas, algumas já com troncos como punhos, de tantos anos bravios. Não havia ninguém que se aventurasse a penetrar ali, tal a braveza da monda. Assim, inculto e agreste, permaneceu muitos anos. Toda a encosta até abaixo era um emaranhado de silvas, cobrindo o chão onde algumas faias tristes e raquíticas teimavam em crescer.

Nesse tempo remoto, já os Frades Franciscanos viviam no Convento de São Boaventura, com a sua igreja anexa, onde hoje está instalado o Museu das Flores. Por opção, levavam uma vida miserável, jejuando e rezando. Ajudavam o povo sem contrapartidas. Um dia, vendo muita gente passando fome por falta de terrenos cultiváveis, lembraram-se de serem eles próprios a desbravar aquele monte bravio que todos os dias avistavam, a fim de criar terras lavradias da sua grande encosta para o cultivo do trigo. E mal o pensaram, logo começaram a árdua labuta. Do erguer do Sol ao alpardecer, com foices roçadoiras e enxadas, trabalhavam sem parar. Quando o dia começava a despedir-se, exaustos e extenuados, ainda conseguiam reunir forças para cortar dois ramos de faia: amarravam-nos em cruz e erguiam-nos no lugar onde tinham terminado a tarefa do dia. Era o símbolo do seu sacrifício, à semelhança do que fizera Jesus no Monte Calvário.

Mas o monte era extenso demais para braços tão escassos. Contudo, os Frades não desistiam. Semanas, meses, anos, diariamente trabalhavam de sol a sol. Atrás de si, lindas terras iam surgindo. Ao fim de sete anos, estava toda a encosta desbravada. E todo aquele monte se orgulhava da sua nova imagem. Da Vila agora avistava-se as muitas cruzes ao céu erguidas. Passou então o povo a chamar-lhe Monte das Cruzes. Durante muitos anos foi local de cultura de trigo, fartura para tanta gente. Depois, fizeram pastagens, mais tarde divididas por bardos de hortênsias, intensamente floridas todas as primaveras. As cruzes, essas, desapareceram com o desfazer dos anos. O nome ficou para sempre — Monte das Cruzes. E o Museu ainda guarda as velhas foices, muito puídas de tal árduo trabalho.

O símbolo da cruz ainda hoje se mantém na heráldica da Freguesia de Santa Cruz das Flores, testemunhando, no brasão da Câmara Municipal, o sacrifício daqueles frades laboriosos.

 

Glossário:

alpardecer - entardecer

foice roçadoira — espécie de podoa de cabo comprido.

monda — erva daninha.

terras lavradias — terras lavradas.

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por Susana Soares às 15:26

Quinta-feira, 10.01.13

Ilha

Autora: Gabriela Silva

Quando eu nasci, não sabia que o meu berço era uma ilha.

Ninguém sabe, quando nasce, se a sua vida vai ser uma aventura ou um desígnio!

À medida que vamos crescendo, vamos tomando consciência do espaço que ocupamos na comunidade, começamos a reconhecer os rostos que nos são familiares e vamos tomando consciência de que pertencemos a um lugar.

Deve ter sido aí, quando a noção de pertença apareceu na minha vida, que percebi que não podia fugir da ilha. Talvez pudesse ir até à porta da igreja ou mesmo correr da Fazenda a Santa Cruz. Porém, haveria sempre um ponto onde a minha corrida tinha que parar.

Era o mar. Esse mar que define um conceito que nos acompanha pela vida toda. Ilha. Mar à volta. Pedaço de terra rodeado de água por todos os lados. Fazia lembrar o recreio da escola, o jogo das escondidas ou a cabra cega e os colegas todos a um lado a cercarem o portão para eu não fugir. E sentia uma inquietação que não sabia explicar.

Um dia terei ido a Santa Cruz e descobri o Corvo. Afinal, não estávamos sós. Havia mais ilhas. Mais tarde, na escola, aprendi que várias ilhas formam um arquipélago. Mas via as ilhas num mapa e nunca se percebe uma ilha num mapa! Eu nunca percebi.

Aos 8 anos, com a falta de vista, tive que ir ao Faial. Viver na ilha também queria dizer que não se podia ficar doente sem sair. A ilha é de gente saudável.

No Faial, sim, percebi a ilha e as ilhas mas a noção de arquipélago levou ainda muito tempo a consolidar. Só fui a S. Miguel depois de adulta, depois de já ser professora! Nesse tempo as viagens eram feitas de barco e eu era enjoadiça. Doze horas no Ponta Delgada para chegar ao Faial, já eram castigo que me bastasse!

Só quando percebi que existem milhares de ilhas no mundo é que percebi que havia incorrido no erro de pensar que só a minha ilha era uma ilha à séria.

Nos tempos que correm, basta ir ao Google, ao Google Earth ou a qualquer outro motor de busca da internet, para ter a resposta rápida e eficiente a todas as perguntas que nos apeteça colocar a essa máquina do tempo e do espaço que tudo sabe. Acontece que eu vivi sempre sem internet. Até vivi sem luz elétrica, sem água canalizada e sem estradas. E fui feliz. Mas fui incompleta, claro! (Ou não).

Os anos foram passando desde que conheço muitas ilhas, muitas cidades e até alguns países. Aprendendo todos os dias coisas novas, assimilando novas culturas, falando outras línguas. A vida é dinâmica e o tempo encarrega-se de fazer os milagres mesmo sem a nossa intervenção. Somos habitantes de um planeta incrível onde a mutação é permanente. Também me lembro do tempo em que a ilha não dependia do exterior para se sustentar porque as pessoas eram humildes mas criativas, toda a gente cultivava a terra e éramos todos muito iguais em necessidade e recursos. Meio século depois, a ilha depende em quase tudo do exterior. São façanhas daquilo que chamamos de evolução ou progresso.

Também me lembro do tempo em que as pessoas eram solidárias e compassivas umas com as outras. Hoje, nos museus é que encontramos os sinais dessa forma fraterna de viver a vida.

Mas voltemos ao presente. Em pleno século XXI nas Flores. E eu de novo a pensar que somos uma ilha única! Tantas voltas, tanto tempo, tanta cultura adquirida, para voltar ao mesmo lugar! Afinal, a ilha das Flores, no contexto dos tais milhares de ilhas que a internet nos fez desvendar, continua a ser este lugar único, magnífico, que cabe no coração de qualquer um que a queira descobrir e sentir.

Parece uma descoberta banal mas não é.

As ilhas vulcânicas dos Açores são pontos de fuga para as Américas e a emigração é transversal a todas as ilhas no século XX, década de sessenta. Nessa altura, com a guerra no ultramar, muitas famílias emigraram para livrar os filhos da tropa mas a maioria, procurava melhor vida para si e para os seus. Partir era o mote. Da ilha das Flores, no início do século, em baleeiras e a salto, aportaram à Golden Gate algumas dezenas de florentinos. Alguns desses herdaram águias em ouro e passaportes legais que levaram, mais tarde, os filhos ao mesmo destino.

Os portugueses radicados na América e Canadá fixaram-se em comunidades. Ajudavam-se uns aos outros na instalação e início de vida porque levavam da ilha esse sentido gregário, essa noção de caridade e justiça que faz com que as pessoas se sintam irmanadas apenas pelo fato de terem nascido debaixo do mesmo teto ilhéu. A ilha tem essa mística incrível que se mantém até hoje.

Alguns voltam, outros não. Mas a ilha está lá, onde estiver um ilhéu. Está a coroa do Divino Espírito Santo com uma lâmpada acesa, está um registo do Senhor Santo Cristo ou uma fotografia do mapa dos Açores como quem diz:

- Ninguém se engane. Sou daqui.

Às ilhas, chegaram pessoas de outros continentes. Muitos deles vêm para ficar. A pergunta legítima, urgente, só pode ser uma:

- Porquê aqui?

Pois foi assim que encontrei a Nina. Foi com essa pergunta que iniciamos uma amizade que já tem muita cumplicidade e muito tempo à volta da mesma questão: Porquê aqui?

A Nina nasceu e viveu em La Rochelle na França. Frequentou a universidade e a sua tese de doutoramento abordava questões como insularidade, ilhas e isolamento. No contexto dos seus estudos, veio para os Açores e foi fazendo incursões por diversas ilhas. Acabou nas Flores. Na realidade, tudo começou nas Flores. Vive aqui há quase dois anos.

Estamos a desvendar os mistérios da sua tese, relendo os inúmeros autores que se debruçaram sobre a temática ILHAS e estamos diariamente a descobrir novos conceitos e novas formas de ver esta realidade.

Talvez surja um livro extraído desta tese e da nossa conversa sobre a temática mas também pode surgir um folhetim ou uma novela. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se fala de ilhas!

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por Susana Soares às 19:56

Terça-feira, 11.12.12

Estória da Carta de jogar (Corvo)

Autor: João Maria Barcelos

 

 


 

Há muitos, muitos anos, andavam uns rapazinhos correndo o calhau quando encontraram, entalada entre duas pedras, uma carta de jogar — vinha a ser a rainha de copas. Novinha do trinque, como se saísse da fábrica. Com todo o cuidado, levaram-na para a povoação. O adro da igreja era pequeno para conter tanta curiosidade. Confusa, a patuleia interrogava-se: que seria aquilo?! Todos se puseram a dar volta ao miolo, olhando para o pequeno postal que mostrava o busto de uma donzela loira acompanhado de dois corações vermelhos, um em cada canto transverso. Que cheirava a coisa divina, isso sim, ninguém tinha dúvidas! Assim, coçando a cabeça e semicerrando os olhos, balbucia um dos mais afoitos na arte de imaginar:

Deve de ser uma santa!...

Das bocas abertas saltam ohs de espanto atordoado de incerteza. E talvez fosse mesmo — uma santinha perdida, abandonada por algum navio ora naufragado. Isso mesmo. Agora já não havia dúvidas. Era uma santa do Céu. Muito semelhante àquelas que o Senhor Padre usava para assinalar as páginas da pequena bíblia de bolso que consigo sempre trazia. Talvez até mais sagrada, a avaliar pelos bonitos corações vermelhos presentes!…

Era de agradecer ao Céu a ventura de tão inesperado acontecimento — a chegada de mais uma santa protectora!

— Santa, é com certeza, mas que santa será?

De um dos cantos do adro, logo responde um erguendo a voz:

— É muito fácil, como a gente nã sabe o nome da santa, o melhor é rezar a ladainha que o senhor Padre António— Deus lhe dê o Céu! — nos ensinou. Todos concordaram. Com a devida entoação e pausado ritmo, lá iniciam a ladainha:

— Santa Maria Madalena...

— Ora pro nobis...

— Santa Luzia...

Ora pro nobis...

Em cada invocação, cadência bem ritmada, o coro aumenta de intensidade.

— Santa Catarina...

— Ora pro nobis

— Santa Quitéria...

— Ora pro nobis...

— ...

Como já não havia santa que restasse do gineceu da divina corte celestial, e para que se não perdesse a imploração colectiva, levanta-se um deles e, na mesma entoação, brada aos céus:

— Seja que santa for...

Automaticamente, logo todos respondem em coro:

— Ora pro nobis...

 

Nota: Esta historieta era contada antigamente nas Flores para achincalhar os Corvinos.

 

Glossário:

correr o calhau — percorrer o rolo à procura achados.

achados — coisas encontradas nos rolos, trazidas pelo mar.

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por Susana Soares às 20:39

Sexta-feira, 23.11.12

A ilha

Autora: Gabriela Silva

Apenas 142 km2 de superfície. Uma ilha perdida no atlântico onde vivem menos de 4000 pessoas.

Podia ser o começo de um qualquer trabalho de investigação sobre a ilha das Flores! Há quase sessenta anos que vivo nela, que escrevo sobre ela e, todos os dias, sou animada por novas facetas deste caleidoscópio que é a ilha das Flores.

Ainda não se sabe se é a sua beleza esplendorosa, se a rigidez de um clima de uma instabilidade dolorosa ou a distância que a separa do mundo que fazem desta ilha, uma das mais procuradas dos Açores. Acreditamos que todos são ingredientes desta poção mágica que faz da ilha o cenário ideal para um conto de fadas ou para o mais animado triller de ação ou terror. Efetivamente, tudo pode acontecer no meio deste verde de mil tons e deste mar encapelado que conta histórias novas em cada maré.

Os homens e mulheres das Flores sempre tiveram que viajar muito. No início foi a baleia, sustento de muitas famílias, a seguir foi a emigração a salto nas baleeiras que adivinhavam as "Califórnias perdidas de abundância”. E se é verdade que viajar é crescer, o florentino dos finais do século XIX era intrépido e arguto.

Parece que herdamos dos nossos antepassados muitas dessas raras virtudes de coragem e inteligência. Não foram poucos os florentinos que se distinguiram aqui e além, neste mundo de Deus, onde fizeram história. Muitos, não voltaram à ilha mas falam dela na distância descrevendo ainda os cheiros e os sons como se estivessem escritos nas suas vísceras. Na poesia de Alfred Louis e de Pedro da Silveira, a ilha “cheira”, quer no odor das flores, quer na gastronomia típica que levaram nas papilas gustativas.

O tempo mudou muitas das nossas opções. Felizmente deixou intacta a beleza deslumbrante que nos torna cartão-de-visita para o mundo. A ilha de hoje tem menos gente mas alberga muitos sonhos. Tornou-se também ilha de adoção de muita gente de outros países que aqui encontraram tudo aquilo que muita gente procura por esse mundo fora: água abundante, paz, segurança e um clima ameno. Parece estranho que se fale deste clima neste tom mas a verdade é que, comparado com o clima do norte da Europa, o anticiclone dos Açores é uma referência abençoada.

A ilha está dotada de infraestruturas excelentes: rede de águas e esgotos, recolha seletiva de lixo e estação de tratamento, luz elétrica, rede viária recente e excelente, estruturas para a prática do desporto, bibliotecas, zonas de lazer, serviço de saúde público e gratuito para todos, escolas até ao final da escolaridade obrigatória, instalações desportivas e condições para a prática do desporto, zonas balneares e piscinas naturais, cafés e restaurantes em quantidade suficiente, serviços públicos, porto, aeroporto, etc, etc, etc.

Mas é claro que viajar é fundamental para o florentino. E isso torna ainda mais verdade que a ilha é um lugar especial no mundo. Quando saímos e tomamos contato com outras realidades, apreciamos ainda mais aquilo que temos e valorizamos esta paz que gostaríamos muitas vezes de mudar mas que sabemos conscientemente que é o nosso maior tesouro.

A insatisfação é também e sempre uma forma de crescimento. Não fosse o sentimento indeterminado de ansiedade e a história não se teria povoado de tantos nomes ilustres. A obra-prima tem que ter a sua dose de ansiedade, de medo e de insatisfação.

Está aqui um blogue de informação e formação, de notícias e sugestões, de recolha de opiniões e de estudo.

Grata pelo convite para participar neste espaço de debate, prometo trazer à liça o que de melhor se faz nesta porção de terra onde a imaginação vale mais do que o medo.

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por Susana Soares às 20:04

Quarta-feira, 14.11.12

"A madrinha dos Açores"

Autor: Francisco Aurélio Braz    

    A viver há 18 anos na periferia do Porto, uma das minhas “paixões” foi conhecer o continente português, com todas as suas diferenças histórico-culturais.
    Percorri o país de lés-a-lés, deslumbrei-me com hábitos, costumes, tradições, gastronomia, monumentos, cidades, vilas, aldeias e lugares remotos e pitorescos.

    Inebriei-me com paisagens com diferentes matizes; ora no estio, ora no Outono, ou no Inverno. Conheci modos de vida ancestrais, como em Rio de Onor, uma pacata aldeia raiana, comunitária, situada junto ao rio que lhe deu o nome, Rio de Onor, no concelho de Bragança, cujo regime pressupõe a partilha e entreajuda de todos os habitantes. A aldeia, para além de ter um regime de governo próprio, respeitado pelos tribunais judiciais, tem também um dialecto próprio, embora já pouco falado nos nossos dias, apesar de conservar uma pronúncia mais próxima do castelhano do que do Português. As decisões são tomadas numa espécie de conselho de anciãos. As casas são cobertas com lajes de xisto, e a aldeia é cortada pela fronteira entre os dois países, Portugal e Espanha, cujos vizinhos mais próximos são “nuestros hermanos” na aldeia com nome similar Rihonor de Castilla.                        :
   Por onde passo procuro indagar das minhas origens, das nossas tradições e costumes, e, por mero acaso, tomei conhecimento da existência de outra aldeia de nome Açores. Situa-se em Celorico da Beira, uma vila do concelho da Guarda, Beira Interior Norte, lá para os lados da terra fria. Pus-me a caminho. São uns míseros 200km… só de ida, mas valeu a pena. Nesta aldeia beirã descobri tradições semelhantes às das nossas ilhas.

   Visitei a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Açores, onde estavam depositados os símbolos do Espírito Santo, cuja coroa é semelhante às nossas, e ali se realizam também as Festas do Espírito Santo, embora em moldes muito diferentes das nossas.
   De entre as  várias  curiosidades  encontrei  algumas coincidências: nesta aldeia há dois padroeiros: Senhora do Açor e Divino Espírito Santo. Quanto a festas e romarias, têm  a  Festa  da  Senhora  do  Açor,  a   Festa do Divino  Espirito  Santo, a   Festa do Emigrante  e  a  Festa de Santo António. Conversei com os habitantes deste pequeno povoado com pouco mais de 350 habitantes – que se chamam açorianos, como nós – - falámos, obviamente,  das coincidências;  sermos  ambos açorianos e termos festas, romarias e tradições semelhantes…

Vem tudo isto a propósito de uma lenda curiosa que nos liga, de certa forma a esta aldeia: 

A Madrinha dos Açores

Há muitos anos atrás, um falcoeiro lançou um açor sem ordem do rei e, como a ave se perdesse, o rei mandou que lhe cortassem a mão. O pobre falcoeiro, aflito, pediu ajuda à Virgem e, de repente, o açor pousou-lhe na mão. El-rei, vendo este milagre, não só perdoou o falcoeiro como mandou erigir, perto de Celorico da Beira, uma igreja dedicada a Nossa Senhora dos Açores. 
 A Infanta D. Isabel, irmã do Infante D. Henrique, em pequenina ouvia contar a uma velha aia, que tinha uma casa para essas bandas, muitas histórias de milagres da Senhora dos Açores. Gravou na sua memória esses milagres e tornou-se muito devota da Senhora dos Açores.
 A notícia dos milagres da Senhora espalhou-se e o santuário no século quinze era visitado por muitos romeiros, sendo um deles Gonçalo Velho Cabral.
 Nos Paços do Limoeiro, Velho Cabral, já depois de ter sido chamado pelo Infante a participar nos descobrimentos, conversando com a Infanta D. Isabel, grande devota da Senhora dos Açores, prometeu dar esse nome a uma terra que descobrisse e ser ele o padrinho e ela a madrinha dessa terra.
 Gonçalo Velho Cabral partiu depois pelo Atlântico e, ao chegar à primeira ilha, deu-lhe o nome de Santa Maria. Aí encontrou uma linda gruta para os lados de S. Lourenço, a que deu o nome de gruta do Romeiro, lembrando as suas romagens a Nossa Senhora dos Açores.
 Cumpriu também a promessa feita à infanta D. Isabel e assim o nosso arquipélago passou a chamar-se Açores. Gonçalo Velho Cabral foi o padrinho e a Infanta D. Isabel a madrinha e colocaram as ilhas sob a protecção de Nossa Senhora.
 A Infanta, no entretanto, casou com o Duque de Borgonha e deixou Portugal, mas manteve-se muito devota da Senhora dos Açores e indicou a seu irmão muitos flamengos para virem ajudar a povoar as ilhas de que era madrinha. A Infanta levou vida santa e, quando morreu, foi sepultada na igreja da Cartuxa de Dijon, que foi transformada pela Revolução em asilo para doentes mentais.
 Muitos anos mais tarde, um recluso desse asilo viu sair do túmulo a Duquesa de Borgonha, a Infanta D. Isabel, majestosa no andar que com voz suave lhe disse:
 — Eu sou a Infanta de Portugal. Agora habito o céu e quero que tu digas às gentes das ilhas dos Açores que eu e Gonçalo Velho Cabral lhes pedimos para que se lembrem daquela que lhes deu o nome: Nossa Senhora dos Açores e Lhe dediquem ao menos uma igreja.
 Dizendo isto e dando-lhe mais alguns conselhos, desapareceu. Porém o desejo da madrinha dos Açores ainda continua por realizar-se porque não há nestas ilhas do Atlântico uma igreja dedicada a Nossa Senhora dos Açores.

Fonte: Furtado-Brum, Ângela, Açores:Lendas e outras histórias, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999, p.17-18.

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por Susana Soares às 00:49

Quarta-feira, 07.11.12

"A Ilha no Coração"

Autor: João Maria Soares de Barcelos

Antes de abordar o tema a que me propus, em primeiro lugar quero felicitar a Dr.ª Susana Soares pela criação deste importante blogue sobre a Ilha das Flores. Virá certamente diminuir muito a distância da Ilha, nomeadamente para os ‘emigrantes’ como eu. Por mim, colaborarei sempre que possível, dentro das minhas modestas possibilidades.

Para inaugurar a entrada no Blogue, falarei um pouco sobre as saudades que vou sentindo na ausência da Ilha, com um texto por mim elaborado há já algum tempo, agora aqui modificado.

 

Desde muito cedo a vida me ensinou a saudade e a ausência. Saí das Flores aos 11 anos de idade. Na Ilha havia nesse tempo apenas um pequeno colégio, com muita carência de professores. O Liceu de Angra, esse tinha bons mestres e dava formação para todos os ramos da ciência. Assim se decidiu a minha sorte…

O Carvalho araújo no seu ronceiro navegar
Nessa altura, nos anos sessenta do passado século, as viagens entre a Terceira e as ilhas de baixo eram feitas apenas de barco, nos célebres ‘vapores’ Carvalho Araújo, Ponta Delgada e Lima. A viagem entre a Terceira e as Flores demorava pelo menos três dias, tendo chegado mesmo aos cinco quando o navio se atrasava nos serviços em cada ilha (mais depressa chegavam os Americanos à Lua!”…). Por consequência só se podia voltar à Ilha nas férias de verão. Depois, a distância aumentou com a vinda para o Continente e manteve-se a periodicidade das visitas.

Quem parte transporta sempre a Ilha no coração. Cada visita que fazia às Flores procurava de lá trazer alguma coisa que lembrasse aquele torrão sagrado. E por toda a minha casa estão dependuradas aquelas grandes e lindas fotografias da Ilha tiradas pela grande angular do sr. Padre José Alves Trigueiro, que teve a amabilidade de me ceder. Cada vez que as miro é como se o pensamento se libertasse e na Ilha poisasse.

No quintal crescem a olhos vistos os araçaleiros trazidos da nossa quinta da Tronqueira. Os araçás já estão a acabar por esta altura, este ano produziram quase dez quilos. Por cá dá-se muito bem a espécie que produz o araçá vermelho, carrega todos os anos. O araçaleiro amarelo é mais esquisito e reage muito mal à geada.

No pequeno quintal há um espaço com algumas plantas de inhame. Embora as suas copas (folhas) não resistam à geada, na primavera rebentam novamente e já consegui colher inhames com cerca de um quilo. Asseadíssimo!!...

No relvado, por entre a erva, despontam o poejo e a macela, trazidos das terras do mato. Quando se acariciam libertam um perfume que nos transporta para as tapadas[1] longínquas, na recordação da infância. As hortênsias, floridas, pintam o resto do jardim com cores do azul ao vermelho e transparecem também com um pouco do seu característico perfume.

A criptoméria, essa, coitada, trazida há muitos anos num pequeno vaso, descuidadamente plantada, cresceu tanto que já ameaçava destruir os fios do telefone e da eletricidade — com muita pena nossa, teve que ser abatida.

[1] Relvas do interior da Ilha, junto ao mato.

Feijão, antes de entrar no forno
Aos fins-de-semana aproveito para cozinhar à moda da nossa ilha: faço um bolo do tijolo para acompanhar o feijão assado no forno, feito num tacho de barro, ou um molho de fígado, cozinhado num caldeirão de ferro, de se lhe tirar o chapéu, ou uma sopa do Espírito Santo, que perfuma toda a casa em aromas de hortelã. Na nossa casa não se faz o cozido à portuguesa – em seu lugar faz-se uma cozinhada, apenas com carne e enchidos de porco, a carne salgada dois dias antes.
Lapas apanhadas na Figueira da Foz
Quando chega a primavera costumo ir à Figueira da Foz apanhar erva-corra, por alguns chamada erva-do-calhau e erva-patinha, e cá se fazem as tradicionais tortas, que toda a gente aprecia. Aí, aproveito para apanhar umas lapas, que se comem cruas, ou grelhadas na brasa, com pão de milho, acompanhadas por uma pinga da boa.

Este ano, pela primeira vez, resolvi fazer a nossa linguiça, com receita dada por minha mãe. Depois de devidamente temperada durante três dias, foi mais outros três ao fumeiro do vizinho, e ficou com um sabor muito semelhante à nossa linguiça tradicional. Bonzíssimo!!...

No meio destas recordações, por aqui vou vivendo. E aqui estou, mais uma vez à espera do verão…

Mesmo assim acompanhado, às vezes, naqueles dias mais nublados, se a saudade da Ilha teima em insistir, para afugentá-la, abraço a viola de dois corações e canto aquelas quadras de outrora, no rasgado da Chamarrita…

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por Susana Soares às 21:43


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